Foto de Athena Azevedo: André Kaires como Flagelante em "O Sétimo Selo". Ilhabela, SP. 2018.
Manifesto
de: João MacDowell
A imaginação é a fonte da liberdade.
Ópera do Oprimido ou Ópera da Esperança é uma abordagem prática com estratégias para produzir eventos operísticos que têm o potencial de envolver a comunidade, servir como um ritual secular de transformação e ajudar a ressignificar conflitos culturais históricos de opressão.
Essa prática é derivada diretamente da filosofia educacional de inclusão expressa nos livros: “Pedagogia do Oprimido” e “Pedagogia da Esperança” de Paulo Freire. Nossa prática é herdeira de uma longa tradição do teatro como forma de libertação, e consequência direta dos teatros de Augusto Boal, Bertolt Brecht e Antonin Artaud.
A Ópera do Oprimido foca no processo, não no resultado.
No Brasil faz mais sentido dizer Ópera do Oprimido, por nossa relação histórica com o tema. Em países ricos surte mais efeito focar na Esperança. Nos EUA, a expressão “Opera for Hope” parece abrir mais portas.
A Ópera do Oprimido traz em si a herança da Antropofagia, do Tropicalismo e do Realismo Mágico. E ir além, não apenas buscando conteúdo que expressa a perspectiva multicultural de povos colonizados, mas também abordando a prática da produção como um laboratório de libertação de novos talentos e formação de criadores.
Não podemos mudar o passado, mas podemos mudar o futuro.
Para criarmos juntos um futuro melhor precisamos ressignificar memórias de opressão em nossos corpos. Mesmo que cheguemos a uma sociedade com igualdade de oportunidades, as memórias ainda estarão lá. Precisamos cantar isso juntos para superá-lo. Ainda estamos longe de viver em uma sociedade igualitária, daí a necessidade de refoçar a natureza do trabalho de transformação que acontece através da música. Trabalhamos na atualização do alcance da linguagem e na ampliação do alcance espiritual de temas de relevância humana, confiando no poder libertador da imaginação e no poder mágico da voz humana.
Precisamos revisar o canon com novos olhos.
Critérios objetivos são necessários para determinar se uma obra suporta a proposta. A prática deve incluir oportunidades de diálogo intercultural. As partes devem prever artistas com diferentes formações para encorajar diversos artistas a trabalhar lado a lado, envolvendo a comunidade local para compartilhar conhecimento musical e cultural. Trabalhamos para encontrar novas narrativas sobre questões relevantes para a comunidade.
A Ópera do Oprimido aborda a indústria da ópera de uma perspectiva cultural e comercial. Um ritual secular que envolve a comunidade e pode fornecer um modelo econômico que torna a arte uma força vital na comunidade. Visamos produções de baixo custo relativo, casas lotadas, marketing direcionado e turnês. Estamos almejando um modelo financeiramente sustentável.
Alguns critérios objetivos:
- Dar preferência a obras inéditas de compositores vivos ou recentes. Incentivar o desenvolvimento de novas partituras e manter a prática vibrante.
- Pesquisar questões de vida diretamente na comunidade e encomendar novas obras com o apoio da comunidade.
- A partitura deve engajar artistas de diversas origens, incentivando o diálogo intercultural. O plano de produção deve envolver artistas experientes, iniciantes talentosos e desajustados da comunidade, promovendo um ambiente colaborativo característico da ópera em seu melhor aspecto.
- Comprometer-se com seminários e conversas abertas sobre questões da comunidade relacionadas ao trabalho de colaboração, convidar a comunidade para conversas e seminários; ouvindo as colocações da comunidade, traduzindo isso para a linguagem dos profissionais, sempre que necessário, e também compartilhando o conhecimento específico dos profissionais sobre as técnicas que possam ser de interess, assim como discutindo orientação para jovens talentos.
- Obras como “Tamanduá” e “O Sétimo Selo” incorporam essas ideias no processo de produção. Em Tamanduá, há espaço para um coro comunitário que tem destaque de solista na ópera. A história permite uma discussão sobre imigração e ambientes multiculturais. Em “O Sétimo Selo,” tivemos um coro de desamparados com gritos de flagelantes. A ideia é aproveitar a experiência de reunir um grupo de voluntários e atores apaixonados que encontrem significado de vida na prática de produção artística, lado a lado de profissionais já tornados anestesiados na prática do ofício. É a possibilidade de uma experiência transformadora.
- A necessidade é mãe da invenção: incentivar obras de artistas de culturas sub-representadas. Treinar artistas de origens não tradicionais na organização e expressão de sua sensibilidade no ambiente da grande ópera. (Foco em notação e habilidades de gerenciamento de projetos.) Em situações de carência de compositores treinados, obras do repertório padrão podem se encaixar na prática proposta: “West Side Story: de Bernstein e a “Ópera dos Três Vinténs” de Wiel & Brecht, por exemplo.
- Somos todos americanos. Um tremendo corpus da arte latino-americana encontra esperança em meio a circunstâncias terríveis. Temos uma história de superação de desafios para encontrar o sublime diante da opressão. As culturas do Realismo Mágico, do Tropicalismo e da Antropofagia, existem como um paradigma cultural que lança luz solar sobre a escuridão da consciência necropolítica (característica das melhores produções eurocêntricas modernas). Podemos abrir uma janela para novas narrativas que semeiem mudanças positivas sobre os traumas da opressão. O teatro de ópera tem o poder de afetar toda a cultura. A devida atenção à América Latina é essencial. Precisamos de representação na arte do drama cantado. Temos uma chance de causar consequências profundas ao aumentar o escopo de perspectivas em nosso ambiente que é inevitavelmente multicultural. Temos uma tradição de estratégias para incorporar aspectos culturais tanto do colonizador quanto das populações oprimidas. Essa abordagem deve ser benéfica para a ópera em geral. A perspectiva cultural latino-americana precisa de uma chance para reverberar nos grandes salões. O poder mágico das vozes humanas pode mudar a forma como vibramos como cultura, libertando simultaneamente o oprimido e o opressor de sua condição desumanizada.
- Essa abordagem produz impacto cultural por meio do diálogo colaborativo, e também fornece um modelo econômico sustentável para a arte. A conexão entre platéia e atores gera um vínculo de comportamento social. Assim, combinamos o alcance comunitário e educacional com desafios de práticos de promoção e sustentabilidade da arte. A criação de novos trabalhos é viabilizada por meio da comercialização de produtos relacionados ao estilo de vida. À medida que aumentamos as chances de impacto social, também criamos um público jovem que permanece fiel e apoia a arte em compromisso vital por anos.
- Estamos criando eventos comunitários de grande ópera, onde obras que discutem novas narrativas para a diversidade celebram o poder da voz de nosso tempo. Os trabalhos de câmara são incentivados como sementes para produções maiores, treinamento de equipes de conjuntos e demonstrações profundas de intensidade dramática ou virtuosismo de expressão. O poder da música e a magia das vozes criam uma nova forma de perceber a cultura, reverberando além da sala de espetáculos.
- Quando os italianos inventaram a ópera em Florença do século XVII, estavam tentando recriar o teatro grego, mas o teatro grego vinha de rituais de iniciação bem mais antigos, onde música, drama, magia e medicina eram um só. Buscamos uma prática contemporânea que nos conecte com a essência transformadora desses ritos. A ópera se conecta ao teatro grego enquanto ritual secular que brota da vida religiosa politeísta da antiguidade. Um ritual sagrado pode se fossilizar e se tornar prejudicial para a comunidade; uma cerimônia secular pode ser sempre renovada com novos textos, novas melodias, novos atores. O som da voz humana em harmonia pode moldar o inconsciente coletivo e transformar nossas certezas.
A Ópera do Oprimido implica em uma estética multicultural e uma técnica que possa abranger todas as formas de expressão.
A tradição dos dramas musicais populares como o Bumba Meu Boi no Brasil, e das festas com enredo, como o Carnaval, trazem um elemento libertador, que contrapõe a miséria com o poder da festa. Essa contribuição é preciosa, e para além disso, nossa prática traz um elemento de troca de informações.
A ópera tradicional, se enclausurou (em grande medida) em uma prática que é percebida por não iniciados como vazia, entretenimento fútil para pessoas ricas. Nessa arte, o conhecimento (das práticas de trabalho e da escrita musical específica) constitui barreira intransponível que limita o acesso de artistas que não passaram pelas escolas da elite. Nossa prática visa romper essa barreira com ação direta: Ocupando as Casas de Ópera.
Para o desenvolvimento dessa técnica estou editando o livro “Poliharmonia e Consonância – uma abordagem arquitetônica para composição em grandes formatos.” Esse material conta com a contribuição dos compositores que tem trabalhado comigo em cursos e palestras. A técnica só faz sentido quando acoplada a uma filosofia de espetáculo , por isso se fez necessário esclarecer o que é a Ópera do Oprimido.
Brasília, Janeiro de 2023.
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